domingo, 9 de agosto de 2015

menos que um: ilya kaminsky durante a guerra

VIVEMOS FELIZES DURANTE A GUERRA

E quando eles bombardearam a casa dos outros nós

protestamos
mas não o bastante, nos opusemos mas não

o bastante. Eu estava
na cama, e em volta dela a América

ruía: casa invísivel após casa invisível após
casa invisível.

Sentei lá fora e contemplei o sol.

No sexto mês
de um reinado desastroso na casa da grana

na rua da grana na cidade da grana no país da grana
nosso grande país da grana, nós (perdoem)

vivemos felizes durante a guerra.



WE LIVED HAPPILY DURING THE WAR

And when they bombed other people's houses, we

protested
but not enough, we opposed them but not

enough. I was
in my bed, around my bed America

was falling: invisible house by invisible house by invisible house.

I took a chair outside and watched the sun.

In the sixth month
of a disastrous reign in the house of money

in the street of money in the city of money and the country of money
our great country of money, we (forgive us)

lived happily during the war.

(Ilya Kaminsky)

sábado, 8 de agosto de 2015

menos que um: this present moment, esse instante agora, de gary snyder

Charles Freer numa nevasca em Sierra
(mal sabia eu)

Charles Freer fez fortuna construindo vagões de trem.
Arte era do que ele mais gostava no mundo.
Comprou peças da Extrema Ásia - China - Japão -
onde tudo era barato
e fez um belo prédio de pedra para guardar as obras bem perto do pátio,
uma porção estocada no subsolo.

- Depois de duas temporadas trampando
como vigia nas North Cascades,
alguns anos no Japão,
e um montão escalando montes gelados do oeste,
acabou que fui até Washington e pedi pra ver
um pergaminho gigante sobre o qual li num livro
"Rios e Montanhas Sem Fim" ou será que era "Riachos"?
que estava com Freer. Eu queria estudar
a maneira como um artista capta
o tamanho da vastidão das montanhas,
o panorama do mundo.

Eles me deixaram desenrolar um metro por vez
e ficaram todo o tempo de olho - me deixaram tomar notas só a lápis
- acho que foram três horas.

Daí, devagar, o pergaminho foi de novo enrolado.

sábado, 11 de julho de 2015

menos que um (recuperado): E.E.Cummings, hokku que não é haicai

HOKKU

Não ligo muito
De ser lembrado pelo mundo
Em um amanhã qualquer.

Há uma jornada,
E quem é para a longa estrada
Adora não demorar.

A ele a noite chama,
Por madrugada e pôr-do-sol
Ele que fez poemas.


[ilustração do poeta]

sexta-feira, 10 de julho de 2015

menos que um: mario benedetti y seja bem vinda

Bem  vinda

Me ocorre que vais chegar diferente
não exatamente mais bonita
nem mais forte
nem mais dócil
nem prudente
apenas vais chegar diferente
como se esse tempo sem me ver
tivesse te surpreendido também
talvez porque saibas
como te penso e te enumero

no fim das contas a nostalgia existe
ainda que não choremos nas calçadas fantasmas
nem sobre as almofadas de candura
nem sob o céu opaco

eu nostalgio
tu nostalgias
e como me dói que nostalgie

teu rosto é a vanguarda
talvez chegue primeiro
porque o desenho nas paredes
com traços invisíveis e seguros

não esqueças que teu rosto
me olha como o povo
sorri e anseia e canta
como o povo
e isso te dá uma luz
inapagável

agora não tenho dúvida
vais chegar diferente e marcada
com notícias
com angústia
com franqueza

sei que vou te querer sem perguntas
sei que vais me querer sem respostas

 
Bienvenida

Se me ocurre que vas a llegar distinta
no exactamente más linda
ni más fuerte
ni más dócil
ni más cauta
tan sólo que vas a llegar distinta
como si esta temporada de no verme
te hubiera sorprendido a vos también
quizá porque sabes
como te pienso y te enumero

despues de todo la nostalgia existe
aunque no lloremos en los andenes fantasmales
ni sobre las almohadas de candor
ni bajo el cielo opaco

yo nostalgio
tú nostalgias
y como me revienta que él nostalgie

tu rostro es la vanguardia
tal vez llega primero
porque lo pinto en las paredes
con trazos invisibles y seguros

no olvides que tu rostro
me mira como pueblo
sonríe y rabia y canta
como pueblo
y eso te da una lumbre
inapagable

ahora no tengo dudas
vas a llegar distinta y con señales
con nuevas
con hondura
con franqueza

sé que voy a quererte sin preguntas
sé que vas a quererme sin respuestas.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

soluções tradutórias: o buda da luz infinita, amituofo. ou omito fo? questão de autodeterminação dos povos

É sabido que os caracteres chineses possuem uma fonética própria, difícil de transcrever – e mesmo visualizar – em línguas ocidentais. Por isso tem havido, ao longo da história, diferentes maneiras de tentar tal aproximação. A mais comum ao longo de todo o século XX foi a chamada Wade-Giles, que perdeu a primazia assim que a República Popular da China, a continental, instituiu o método Pinyin na década de 1950.

Brevíssima história política chinesa: República Popular da China (continental) e República da China (Taiwan) têm/tiveram um processo de relações diplomáticas muito conturbado por todo o século XX, pelo menos. Foi para Taiwan que correram os nacionalistas de Chiang Kai-shek depois da derrota para os comunistas na guerra civil das décadas de 1920 e 1930, depois também da invasão japonesa de 1937. Assentada em Taiwan, a República da China, ainda hoje não reconhecida no cenário político internacional como um Estado-nação de direito, possui entre suas características mais marcadas uma autoconsciência com relação a essa herança cultural chinesa (sua população é, etnicamente, 95% Han, descendente da China) e uma postura política e identitária muito própria. Por mais que os laços entre Taiwan e China estejam se estreitando e se tornando mais amenos nos últimos anos, os dois países, ainda assim, mantêm divergências consideráveis de comportamento nacional – e ideológico-nacional.

Aqui entra a questão linguística. Os sistemas de transcrição fonética quase sempre tiveram em conta o grande histórico documental da China continental, até pela presença mais massiva de fontes e contatos dos exploradores (aqui, significando suas duas acepções de desbravamento e exploração) com o continente. Quando a República Popular instituiu o sistema Pinyin, portanto, em 1958, Taiwan continuou utilizando seu próprio método de transcrição. Que, verdade seja dita, é uma bagunça sem qualquer padrão.

Mas o governo de Taiwan decretou o Pinyin como oficial para a ilha da República da China, no ano de 2009. De lá para cá, pelo menos oficialmente, podem estar havendo esforços de padronização da maior parte dos documentos institucionais e oficiais, do governo e de grandes instituições. Mas a prática comum, mais popular e mesmo seguida pelas oficialidades, ainda em boa parte dos casos, é o padrão antigo de Taiwan, que mescla sistemas fonéticos e inventaria novas possibilidades.

Quando me comunico com chineses e/ou taiwaneses1 budistas, a saudação de despedida – ou de encontro breve – é um ubíquo 阿弥托佛. Palmas das mãos unidas, curta reverência, e este é o nome do Buda Amida que se utiliza como bênção e cumprimento. Mas 阿弥托佛 é transcrito, em Pinyin, como Amituofo, forma aproximada de sua pronúncia. Esse é o padrão oficial da China continental e de Taiwan, que agora o segue.

Mas os budistas de Taiwan não escrevem Amituofo. Quando utilizam o sistema de transcrição, Taiwan quase sempre me saúda com Omito Fo! As mesmas palavras, 哦弥陀佛, a mesma saudação, talvez o mesmo sentimento de compaixão, bênção e transferência de méritos, mas certamente dois horizontes mentais completamente diferentes com relação a política – e a políticas linguísticas.

Taiwan tem uma resistência no que diz respeito à política linguística do continente não apenas em sua transcrição fonética (o sistema fonético nativo de Taiwan, na verdade, nem chega a usar o alfabeto ocidental para transcrever suas palavras, mas uma série de códigos fonéticos completamente distintos), mas também com relação a sua simplificação de caracteres. A República Popular da China (continental) simplificou diversos caracteres desde as décadas de 1950 e 1960, reduzindo consideravelmente seu número de traços e complexidade – também beleza estética – visal. Taiwan, assim como Macau, Hong Kong e outros países com significativa população chinesa, como Cingapura, mantêm os caracteres tradicionais. Um exemplo: porta,門, se tornou 门. A mesma palavra, o mesmo caractere, o(s) mesmo(s) sentido(s), outra escrita.2

Taiwan resiste a isso, e não escreve seu Buda Amida, sua saudação, seu 阿弥托佛, como Amituofo. Depois de anos trocando e-mails em que meus interlocutores se despediam dizendo Omito Fo!, enquanto eu respondia Amituofo!, cheguei a uma conclusão alarmante: a despeito de minha intenção de distanciamento político e polêmico, eu estava sempre tomando o partido da China continental! Digo, oficialmente eu não estava sendo um expansionista afeito ao imperialismo da República Popular, já que o governo de Taiwan reconhece o Pinyin como seu método padronizado, mas ainda assim... quando todos os meus interlocutores, instrutores, mestres, irmãos no Dharma e colegas de prática me saudavam – e saúdam – com Omito Fo!, que direito (linguístico-político) tenho eu, um antropólogo brasileiro, de sobrepor à sua autodeterminação a minha própria consciência oficial de estar escrevendo no sistema fonético “certo”? Nenhum direito.

Omito Fo!



Notas:

1 Vale notar que os taiwaneses pertencentes à etnia Han se autoidentificam como chineses. Parte disso se deve ao fato de os taiwaneses, enquanto tal, serem uma etnia diferente com sua própria língua (ou dialeto) e padrões culturais diversos daqueles herdados pelos taiwaneses Han.

2 Por questões microsoft-técnicas, mesmo 阿弥托佛 está grafado aqui em sua versão simplificada. O Buda da Vida e da Luz Infinitas, tradicionalmente, surge como 阿彌陀佛.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

autotranslação: ela foi meu hospício & she was my asylum revisited

A primeira versão terminava mudando os verbos: onde se lê o par tanto/canto, havia intense/dance. Agora a história é outra.

she was my asylum
my thirst and serenity
she was bliss and bud my flower and naughtiness
a pack of silence
unmerciful burdened
she was our hollow
the bullet through cold balcony
snowed
she was brisk but
such a thing
that I wonder about to be around here
knowing a day I've been dead
and now I sing



ela foi meu hospício
sede e serenidade
ela foi alegria foi broto e flor e maldade
silêncio lacrado e carrêgo inclemente
ela foi o buraco na gente
a bala varando a varanda gelada
de neve
ela foi breve
mas foi tanto
que me espanta o espanto de estar por aqui
sabendo que um dia morri
e hoje canto

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

menos que um: wang wei e a montanha da terra pura

Passando pelo mosteiro Xiangji

eu não conhecia o mosteiro Xiangji...
a poucas milhas desde o pico enevoado
os antigos bosques não têm trilhas para os homens;
da profundeza entre as montanhas, um sino soa.
um regato murmureja pelas pedras traiçoeiras;
o sol derrama sua luz sobre os pinheiros.
quando anoitece, em meio ao som de um poço seco
medito, calmo, para domar esses dragões de minha mente.



[Wang Wei, poeta chinês do século VIII. Já escrevi sobre algo da poesia dele aqui, além de ter apresentado algo desse texto em um encontro cristão-budista na Bélgica, há alguns anos. Lá, uma monja zen me puxou a orelha, batendo o pé que Wang Wei não era porque não era budista, mas nem de longe, mas nem um pouco. Fico feliz de encontrar ainda outra referência, esta de que ele passou por Xiangji, o mosteiro onde vivia Shandao (Shan-tao), um dos grandes nomes do budismo da Terra Pura]

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

menos que um: mark strand pela integridade das coisas, para daniela

Pela integridade das coisas

Num campo
sou a ausência
de campo.
Este é
sempre o caso.
Onde quer que eu esteja
sou o que falta.

Quando ando
corto o ar
e ele sempre
enche o vácuo
onde meu corpo esteve.

Todos temos razões
para andar.
Eu me movo
pela integridade das coisas.




Keeping Things Whole
In a field
I am the absence
of field.
This is
always the case.
Wherever I am
I am what is missing. 
When I walk
I part the air
and always
the air moves in
to fill the spaces
where my body's been.
We all have reasons
for moving.
I move
to keep things whole.

Las cosas completas

En el campo
soy la ausencia
del campo.
Siempre
es así.
En donde esté
soy lo que falta.

Cuando camino
parto el aire
y siempre
el aire viene
a llenar los espacios
en donde estuve.

Todos tenemos razones
para movernos.
Yo me muevo
para mantener las cosas completas.

(tradução de Juan Carlos Galeano - 1958)