segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

menos que um: silvia curbelo, pintando gala, para izabela

Pintando Gala

Gala na infância. Na chuva.
Vestida de branco. Em um trem
com um livro e uma maleta.
Gala com cisnes, intocada
pela tristeza, penas
caindo de sua boca.
Descalça. Com uma taça
de leite quente, sentada
de pernas cruzadas na cadeira do jardim.

Gala em um táxi. No sono.
Amando o silêncio, seu belo
amigo, confidente,
e atrás de seu ombro esquerdo
a estrada. Uma madonna,
pássara, uma coisa
cheia de anéis como um tronco
de árvore. O vento levando.

Calada como uma estrela do mar.
Ilhada, uma coisa
de praia, luar espalhando
o lençol de cetim de seus sonhos.
Travesseiro lambido por chamas.
A camisola queimando. Desfeita.
Subindo que nem fumaça, como Gala

em seu traje de luzes. Tantas
estrelas nos braços, tantas
folhas caídas. Gala com nuvens de chuva.
Em queda livre. Com pérolas no regaço
e a maldita grana entre os dedos,
súbita solidão

nas dobras do vestido verde.
Tanta distância incontável
abrindo-se de seus
dedos falando baixo. Lavados
na luz do sol. Descansando na piscina
guarda-chuvinha de papel em sua bebida.
Tragando cada desejo.


Painting Gala

Gala in childhood. In rain.
In white garments. On a train
with a book and a suitcase.
Gala with swans, untouched
by sadness, feathers
tumbling from her mouth.
Without shoes. With a glass
of warm milk, sitting
crosslegged in the garden chair.
Gala in a taxi. In sleep.
In love with silence, her good
friend, her confidante,
and behind her left shoulder
the road. A madonna,
a bird, a many-
ringed thing like a tree
trunk. Windblown.

Sullen as a starfish.
Marooned, a beached
thing, moonlight spreading
the great satin sheet of her dreams.
Her pillow licked by flames.
The nightgown burning. Torn loose.
Rising like smoke, like Gala

in her suit of lights. So many
stars in her arms, so many
dead leaves. Gala with stormclouds.
In freefall. With pearls in her lap
and blood money in her fist,
a sudden loneliness

in the folds of her green dress.
So many untold distances
unfolding from her
whispering fingers. Awash
in sunlight. Lounging poolside
with a paper umbrella in her drink.
Swallowing every wish.

domingo, 28 de dezembro de 2014

menos que um: silvia curbelo, se você precisa de um motivo

Se você precisa de um motivo

para Adrian

O jeito como as coisas se movem às vezes,
luz ou ar,
a distância entre
dois pontos ou um mapa se desdobrando
sobre a mesa, ou o vento,
não ligam para a tristeza.
A diferença entre o céu e a sala,
entre geometria e fôlego,
o som que ouvimos
quando dois opostos colidem finalmente,
garrafa em cacos, música country,
um sino, qualquer ponte, uma ligação.
O jeito como algumas histórias terminam no meio
de uma palavra,
as próprias palavras,
galáxias, estatuárias, perspectivas,
a pedra sobre pedra que é a vida,
não ligam para a fome.
O jeito como as coisas se movem, estrada,
espelho, sorte cega. O jeito
como nada se move às vezes,
um beijo, correr de olhos,
não ligam para o norte verdadeiro.
A diferença entre história
e desejo, entre biologia
e oração, qualquer luz
sob a qual ler, qualquer voz ao pé
da escada, ou o som
suave de seu próprio nome, um ossinho
trincando perto do coração.



If You Need a Reason, Silvia Curbelo

for Adrian

The way things move sometimes,
light or air,
the distance between
two points, or a map unfolding
on a table, or wind,
never mind sadness.
The difference between sky and room,
between geometry and breath,
the sound we hear
when two opposites finally collide,
smashed bottle, country song,
a bell, any bridge, a connection.
The way some stories end in the middle
of a word,
the words themselves,
galaxies, statuaries, perspectives,
the stone over stone that is life,
never mind hunger.
The way things move, road,
mirror, blind luck. They way
nothing moves sometimes,
a kiss, a glance,
never mind true north.
The difference between history
and desire, between biology
and prayer, any light
to read by, any voice at the bottom
of the stairs, or the sound
of your own name softly, a tiny bone
breaking near the heart.

sábado, 27 de dezembro de 2014

menos que um: silvia curbelo, aprendendo a tocar coltrane

Aprendendo a tocar Coltrane

Ela achou que fosse verde, não
o esmeralda do veranico
mas um verde da planície escura,
ou das sombras que o rio cria.
Ela pensou que fosse luz, um brilho
ou aviso, o lampejo
na borda finíssima
das nuvens de chuva. O jeito
com que a voz instável se torna
premonição, orvalho
cobrindo a sua nuca. Talvez
fosse mais uma marca,
uma memória de som, alguma tarde
depois do circo deixar a cidade
em que apenas sobrou um terreno
coberto de lixo, uma música
de antigas estrelas, ruína.
E ela pensou em uma cor
como aquela, verde musgo, o verde
da pequena tristeza, sem forma
como o próprio vento. E por um momento
tudo pertencia a ela,
a luz, o terreno, o vento.

- para Adrian [para Silvia, para o ano]





Learning to Play Coltrane

She thought it was green, not
the emerald green of Indian summer
but a green like a darkening plain,
or the shadow rivers cast.
She thought it was light, a glint
or a warning, the shine
at the papery edge
of storm clouds. The way
a voice rising and falling becomes
a premonition, a dampness
at the back of her neck. Or maybe
it was more of an imprint,
a memory of sound, some afternoon
after the circus has left town
and all that remains is a field
strewn with garbage, a music
of pasted stars and ruin.
And she thought of a color
like that, mud-green, the green
of a small sadness, shapeless
as the wind itself. And for a moment
she owned everything inside it,
the light, the field, the wind.

—for Adrian

First published in American Poetry Review.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

menos que um: silvia curbelo, o lago engoliu o céu inteiro

O lago engoliu o céu inteiro

Alguns sonhos são como vidro
ou uma luz sob a superfície da água.

Uma garota chora no jardim.
Uma mulher vira o rosto, e eis tudo.

Acordamos mais de cem vezes
sem saber onde estamos. Dormindo

ao volante. Salvos
pela graça dos anjos.

Todos tocando seus lábios
por algo mais largo, a linha d'água

de algum pesar mais fundo. Todos
se abandonando. O jeito

como a rosa sai do galho e
flutua por completo, sem história.

No final, toda estrada termina
na água. O que sobra de um jardim

é um sonho, alfabeto de saudade.
A sombra da garota. Perfume.





The Lake Has Swallowed the Whole Sky
Some dreams are like glass
or a light beneath the surface of the water.

A girl weeps in a garden.
A woman turns her head and that is all.

We wake up a hundred times and
don't know where we are. Asleep

at the wheel. Saved by
the luck of angels.

Everyone touching his lips
to something larger, the watermark

of some great sorrow. Everyone
giving himself away. The way

the rose gives up the stem and
floats completely, without history.

In the end every road leads
to water. What is left of a garden

is the dream, an alphabet of longing.
The shadow of the girl. Perfume.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

menos que um: mark strand, chegando a isto

- Chegando a isto

Fizemos o que quisemos.
Descartamos sonhos, preferindo a indústria pesada
um do outro, e acolhemos a mágoa
e chamamos ruína o impossível ato de terminar.

E agora aqui estamos.
O jantar está posto e não podemos comer.
A carne espera no poço branco de seu prato.
O vinho aguarda.

Chegando a isto
eis nossa paga: nada é prometido, nada é retirado.
Não temos coração, amor divino,
nenhum lugar a ir, motivo algum para continuar.




- Coming to this

We have done what we wanted.
We have discarded dreams, preferring the heavy industry
of each other, and we have welcomed grief
and called ruin the impossible habit to break.

And now we are here.
The dinner is ready and we cannot eat.
The meat sits in the white lake of its dish.
The wine waits.

Coming to this
has its rewards: nothing is promised, nothing is taken away.
We have no heart or saving grace,
no place to go, no reason to remain.