segunda-feira, 4 de março de 2013

ideofonogramas, psicanálise e naturalização da etimologia

Quando comentei, alguns posts atrás, sobre a etimologia do caracter para Buda (佛), pensei que seria interessante apresentar duas questões possíveis quanto aos processos de constituição da escrita chinesa. 

Partindo de um psicanalista lacaniano chinês - o "único psicanalista da China" -, Huo Datong nos recorda que a parte esquerda do caracter (no caso de 佛 os dois tracinhos ali, que são radical para 人, homem) está geralmente relacionada com a imagem, numa conexão lacaniana com o significante que, concreto, encontra correspondência na realidade objetiva. Vejo 人, vejo um homem/pessoa em pé. 

A parte direita do caracter (弗, , no caso de Buda) é apenas a atribuição fonética ao novo caracter, composto. Nesse caso, a origem etimológica perderia o significado (弗 sendo um elemento de negação, como mencionei) e figuraria apenas como acessório sonoro à composição. 

A razão para isso? Simples: a visão do elemento à esquerda acionaria o hemisfério direito do cérebro, responsável pela compreensão mais abrangente e visual do contato sensorial, lidando com a totalidade orgânica dos dados percebidos e com sua conexão com elementos concretos. 

A visão do elemento à direita acionaria, por sua vez, o hemisfério esquerdo do cérebro, responsável por funções fonadoras, racionalização, pela concretude e pela generalidade dos processos linguísticos. 

E diz mais, Huo Datong: diz que existe uma quebra entre a imagem e a realidade, e uma passa a não mais remeter à outra, num processo de patologização da linguagem alienada. Vejam: 

4.3 La coupure qui se produit entre la figure du caractère chinois et le signifié représente la rupture du lien de l’imaginaire et du réel. La manifestation pathologique de cette rupture est l’amnésie dont l’état extrême est que le patient ne se souvient plus de rien. 

[…] Nous pouvons remarquer aussi que le pictogramme de cheval dans l’idéophonogramme de mère ne joue qu’un rôle phonétique, tandis que sa figure en tant qu’image visuelle du cheval a perdue sa fonction de la représentation de chose, c’est-à-dire son élément de la figure a été refoulé. Le pictogramme de cheval n’indique pas maintenant le cheval, mais seulement le son, ma. (aqui: http://www.lacanchine.com/Ch_C_HuoInc_Txt.html

Explicando que o elemento cavalo do caracter para mãe (o 马 de 妈) cumpre apenas função fonética, o psicanalista diz algo semelhante ao que diz Jonathan Stalling, quando critica a visão reificada, concreta e imagista que – sobretudo – Ezra Pound imprimiu à escrita chinesa. 

Pound, arrastando Ernst Fenollosa consigo nessa obsessão imagista, fazia parecer que a escrita ideogrâmica era supremamente fotográfica, com tudo sendo diretamente vinculado a um elemento do real (ou algo aproximado, posso estar exagerando). Stalling, sobre isso, percebe a constante “ruptura entre real e imaginário” que Huo Datong enunciou e desmente, assim, a ubíqua relação concreta dos poetas: 

The old theory as to the nature of the Chinese written character (which Pound and Fenollosa followed) is that the written character is ideogrammic—a stylized picture of the thing or concept it represents. The opposing theory (which prevails today among scholars) is that the character may have had pictorial origins in prehistoric times but that these origins have been obscured in all but a few very simple cases, and that in any case native writers don’t have the orig- inal pictorial meaning in mind as they write.
(no livro – muito interessante - Poetics of Emptiness

Isso quer dizer que nossa constatação de que Buda (佛) poderia ser um não-humano (人+弗) está, provavelmente, errada do começo ao fim. Seja como for, pensar sobre isso é um exercício interessante para praticar a composição e a aprendizagem dos elementos ideogrâmicos.

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