sábado, 9 de novembro de 2013

com a palavra: Jerome Rothenberg [etnopoesia no milênio, som, tradução, índios e chineses]

"Decidi traduzir os vocábulos &, a partir disto, já estava jogando com a possibilidade de traduzir outros elementos das canções que normalmente não são contemplados pela tradução. Também pareceu importante ficar tão longe quanto possível da escrita. Então comecei a falar, e depois a cantar minhas próprias palavras em cima da gravação de Mitchell, substituindo os vocábulos dele com sons que me pareceram relevantes, gravando a seguir minha versão numa nova fita cassete, tendo que daí explorá-la em suas próprias condições. Também não foi fácil para mim romper o silêncio ou ir além dos níveis de entonação superficiais de minha fala & eu ainda achava mais natural naquela versão anterior substituir os vocábulos por palavras inglesas curtas, como 'one', 'none' e 'gone' (é difícil para um poeta-da-palavra abandonar por completo as palavras), esperando que algo da sua força semântica diminuísse com a reiteração:"

Jerome Rothenberg, no texto Tradução total: uma experiência na apresentação da poesia ameríndia, de 1969. Esse é um dos ensaios incluídos no livro Etnopoesia no milênio, traduzido por Luci Collin e organizado por Sergio Cohn, lançado pela Azougue em 2006.

O que mais interessa notar, nessa passagem, é a preocupação de uma tradução total que envolva os elementos não-semânticos, sonoros e performáticos da poesia ameríndia (Rothenberg está falando sobre a tradução da poesia navajo, sudoeste dos Estados Unidos). Júlio Jatobá e eu, traduzindo poesia chinesa para o português, percebemos parte dessa urgência: como traduzir uma poesia marcadamente sonora (dado que cada caracter chinês representa um fonema) sem apelar para a "poesia-da-palavra"?

Como encontrar compensações e equilíbrios entre a tradução sonora, performática porque cantável, e a carga semântica e imagética que o texto também apresenta?

Estamos, por enquanto, trilhando isso. Rothenberg vem pra ajudar.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

menos que um: trecho dos Amores de Cummings

se eu acredito
em morte esteja
certa
que é

porque você me amou,

[nude with pink drapery, óleo sobre cartão, Cummings pintando Marion Morehouse, sua última esposa, embora o poema provavelmente seja pra Elaine Orr, sua primeira]

if i believe
in death be sure
of this
it is

because you have loved me,

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

menos que um: E.E.Cummings e minha oração pra fechar semana

        MINHA ORAÇÃO

    Deus, fazei de mim o poeta da simplicidade,
    Força,e clareza.    Ajudai-me a viver
Sempre mais por sempre mais altos padrões.    Ensinai-me a
    Tirar da frente a grande pedra,simples,feita porta
    Firme,que se fez à hora morta,
E encher as brechas todas com os mais finos cascalhos, com a argila
    Da aliteração,metáfora,rima.    Dai
    Força para ver e fazer ver erro em tristeza,em felicidade.
Fazei de mim um poeta verdadeiro,sempre justo ao sussurrar de meu
        Chamado,
    Tateando pela noite mais escura
    Atrás da clara luz,sua brancura
Erguido firmemente e resoluto no Pilar do
        Absoluto,
    Trabalhando com paixão,com alma e com certeza,
Escrevendo meu mais alto Ideal no que quer que eu escreva,
    Pra sempre honesta,suave,honrada,e alegremente,
        Nunca temente.

brown landscape with three trees, óleo sobre tela do poeta


MY PRAYER

    God make me the poet of simplicity,
    Force,and clearness. Help me to live
Ever up to ever higher standards.    Teach me to lay
    A strong,simple,big-rocked wall
    Firmly,the first of all,
And to fill in the fissures with the finer stones and clay
    Of alliteration,simile,metaphor.    Give
    Power to point out error in sorrow and in felicity.
Make me a truthful poet,ever true to the voice of my
        Call,
    Groping about in the blackest night
    For ever clearer,dearer light,
Sturdily standing firm and undismayed on a Pillar of
        Right,
    Working with heart,and soul,and a willing might,
Writing my highest Ideal large in whatsoever I write,
    Truthfully,loftily,chivalrously,and cheerfully ever,
        Fearfully ,never.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

menos que um: introdução dE.E.Cummings pros New Poems

Traduzi um trechinho da introdução que Cummings faz a um livro seu. [Revisado brevemente em 14/10/16, 122 anos do poeta]. Pois bem, cá está.

Os poemas a seguir são para vocês e para mim e não para o comumdasgentes
-não há razão para fingirmos que o comumdasgentes é semelhante a nós. O comumdasgentes tem menos em comum conosco do que a raizquadradademenosum. Vocês e eu somos seres humanos;o comumdasgentes é esnobe. Considere, por exemplo, o nascimento. O que o nascimento significa para o comumdasgentes? Catástrofe semsolução.

[...] Se o comumdasgentes nascesse duas vezes, improvavelmente chamaria isso de morte
- vocês e eu não somos esnobes. Nunca nasceremos o suficiente. Somos seres humanos;para os quais nascer é um supremo mistério benvindo,o mistério do crescimento:mistério que ocorre só e sempre que temos fé na gente. Vocês e eu vestimos a arriscada liberdade do destino e ela nos cai como uma luva. Vida,para nós eternos,é agora;e  o agora está muito mais ocupado em ser maior do que tudo para parecer com algo específico,inclusive catástrofe.

bearded man in small hat - pintura do poeta também pintor, como se vê

The poems to come are for you and for me and are not for mostpeople
—it's no use trying to pretend that mostpeople and ourselves are alike. Mostpeople have less in common with ourselves than the squarerootofminusone. You and I are human beings;mostpeople are snobs. Take the matter of being born. What does being born mean to mostpeople? Catastrophe unmitigated.

[...] If mostpeople were to be born twice they'd improbably call it dying
— you and I are not snobs. We can never be born enough. We are human beings;for whom birth is a supremely welcome mystery,the mystery of growing:the mystery which happens only and whenever we are faithful to ourselves. You and I wear the dangerous looseness of doom and find it becoming. Life,for eternal us,is now;and now is much too busy being a little more than everything to seem anything,catastrophic included.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

menos que um: quinzena do tradutor 2013 e E.E.Cummings

Como contribuição à segunda Quinzena do Tradutor (resultados da primeira podem ser lidos aqui), publico um trechinho de E.E.Cummings vindo da peça Him. Que gostem.

Dane-se o que não for circo!

... dane-se tudo que é rígido, estúpido, imóvel, sem risco, tímido autocentrado, dane-se tudo que não seja o picadeiro, que não se divirta, que não arremesse o coração bem na tensão, surpresa, medo e encantamento do circo, o mundo círculo, a existência plena ...

(E.E.eu)



Damn everything but the circus! 

...damn everything that is grim, dull, motionless, unrisking, inward turning, damn everything that won't get into the circle, that won't enjoy, that won't throw its heart into the tension, surprise, fear and delight of the circus, the round world, the full existence...

E.E.Cummings

terça-feira, 20 de agosto de 2013

menos que um: a música agradável de bukowski


No último dia 16, Bukowski faria anos. Daí Thiago Augusto Corrêa, para o Vortex Cultural, pediu que eu traduzisse um do Buk. Fiz. Tradução maluca, aviso logo, um tanto mais experimental do que a teoria da tradução autorizaria. Mas é Bukowski. Pros diabos com a teoria.


sweet music

it beats love because there aren't any
wounds: in the morning
she turns on the radio, Brahms or Ives
or Stravinksy or Mozart. she boils the
eggs counting the seconds out loud: 56,
57, 58... she peels the eggs, brings
them to me in bed. after breakfast it's
the same chair and litsten to the class-
ical music. she's on her first glass of
scotch and her third cigarette. I tell
her I must go to the racetrack. she's
been here about 2 nights and 2 days. "when
will I see you again?" I ask. she
suggests that might be up to me. I
nod and Mozart plays.

(do Love is a Dog From Hell, publicado no Brasil pela L&PM, com a tradução abaixo, de Pedro Gonzaga)

a música suave


vence o amor porque nela não há
feridas: pela manhã
a mulher liga o rádio, Brahms ou Ives
ou Stravinsky ou Mozart. ferve os
ovos contando em voz alta os segundos: 56,
57, 58... descansa os ovos, os traz
para mim na cama. depois do café da manhã é
a mesma cadeira e ouvir a música
clássica. A mulher está no seu primeiro copo de
scotch e no seu terceiro cigarro. digo-lhe
que preciso ir ao hipódromo. ela
está aqui há 2 noites e 2 dias. "quando
voltarei a vê-la?" pergunto. ela
sugere que fique a meu critério.
aceno com a cabeça e Mozart toca.

sábado, 17 de agosto de 2013

menos que um: jorge de lima e a mão enorme

Há dois meses apresentei, num congresso inter-religioso na Bélgica, alguns poemas cristãos de Jorge de Lima (comparados com alguns chineses budo-taoístas de Wang Wei). Fiz versões mambembes deles pro inglês, que ninguém naquela terra sabia o português - ou o chinês.


Um dos poemas de Jorge de Lima era A mão enorme, do livro Tempo e Eternidade que escreveu com Murilo Mendes. Hoje encontrei uma tradução publicada em coletânea de poetas brasileiros - An Anthology of Twentieth-Century Brazilian Poetry. A tradução que gerou The Enormous Hand é de June Jordan, ao que tudo indica.

Apresento, abaixo, tanto o original de Jorge quanto minha tradução e a publicada no estrangeiro. Aceito apontamento de erros.



A Mão Enorme

Dentro da noite, da tempestade,
a nau misteriosa lá vai.
O tempo passa, a maré cresce,
o vento uiva.
A nau misteriosa lá vai.
Acima dela
que mão é essa maior que o mar?
Mão de piloto?
Mão de quem é?
A nau mergulha,
o mar é escuro,
o tempo passa.
Acima da nau,
a mão enorme
sangrando está.
A nau lá vai.
O mar transborda,
as terras somem,
caem estrelas.
A nau lá vai.
Acima dela
a mão eterna
lá está.

fotomontagem de A pintura em pânico, do poeta


The enormous hand

Within the night, within storm,
the misterious ship goes on.
Time passes, tide rises,
wind is howling.
The misterious ship goes on.
Above it
what is this hand bigger than sea?
Pilot's hand?
Whose is the hand?
The ship dives,
the sea is dark,
the time passes.
Above the ship,
the enormous hand
bleeding it is.
The ship goes on.
The sea overflows,
earth disappears,
stars fall down.
The ship goes on.
Above it
the eternal hand
still there is.

(tradução minha)


The Enormous Hand 
fotomontagem de A pintura em pânico, do poeta
Inside the nighttime of the storm,
the mystery caravel goes there.
Time moves, and waters crest,
the wind weeps ugly loud.
The mystery caravel goes there.
Above this ship
what hand is that more huge
even than the sea?
Hand of the pilot?
Whose hand?
The caravel plunges,
the sea stands dark,
time moves.
Above this ship
the large hand
is bleeding.
The caravel goes there.
The sea spills,
land vanishes,
stars fall.
The caravel continues and
above this ship
the eternal hand
is there.
(tradução de June Jordan)


quarta-feira, 31 de julho de 2013

menos que um: toda a américa de ronald of carvalho

Quando verti Chacal ao inglês, ele foi acompanhado de uma versão de um pedaço de Ronald de Carvalho. Toda a América - Toda a America, segundo a grafia própria. Foi um exercício, claro está, do qual eu bem gostei. Acho que gostaram. Tentei ser fiel, como sempre tento, à música do texto - guardados os devidos problemas e problematizações teóricos que "música do verso" pode originar.

E eis que, procurando as coisas agora para postar, encontro - no texto que você pode ler, original e facsímile, clicando em America sem acento - o "aphorismo poetico":

"Cria o teu rythmo livremente"

Toda a América

Oh! Turbilhão de energias e
grandezas latentes,
choques,
saltos,
clamores,
vibrações,
claridades,
tumultos do teu despertar!
O mundo nasce outra vez em ti, e o homem
diante de ti sorri ingenuamente como
um deus. (...)
abrem as entranhas, e do sexo imenso
da terra jorram metais, óleos, pedrarias,
giram os tornos de Puebla, crepitam os
fornos de Tonalá,
e os teares de Jersey, Oaxaca, São Paulo,
Sucre e Punta Arenas trançam (…)

(acima, o original de Ronald. Abaixo, minha versão)

The whole America

Oh! Vortex of energies and
latent greatnesses,
shocks,
leaps,
clamours,
vibrations,
clarities,
turmoils of your awakening!
The world is born again from you, the man
before you open-heartedly smiles as
a god. (...)
the belly is open, from the huge earth's
sex spring forth metals, oils, jewels,
turning around Puebla, crackling
ovens of Tonalá,
and the looms from Jersey, Oaxaca, São Paulo,
Sucre and Punta arenas braid (...)

terça-feira, 30 de julho de 2013

menos que um: cummings transcriado em cachorro viralata

Comemorando homenageadamente dois em um (Mr. Cummings, por um lado, e minha inscrição num doutorado sobre exatamente Mr. Cummings), segue aqui a transcriação (porque essa foi tão livremente rabiscada que tenho até vergonha de chamar de tradução) de um dos poemas (o quinto) do fantástico livro is 5, que cito como referência no projeto doutoral e aqui também. Saquem-lo só:


Se o poeta é alguém, ele é alguém para quem as coisas feitas importam muito pouco - alguém que é obcecado pelo Fazer. Como todas as obsessões, a obsessão de Fazer tem desvantagens; por exemplo, meu único interesse em fazer dinheiro seria fazê-lo. Mas felizmente eu preferiria fazer quase tudo o mais, inclusive locomotivas e rosas. É com rosas e locomotivas (para não mencionar acrobatas primavera eletricidade Coney Island o 4 de Julho os olhos dos camundongos e as Cataratas do Niágara) que meus "poemas" competem.
Eles também competem uns com os outros, com elefantes e com El Greco."
A inelutável preocupação com O Verbo dá ao poeta uma vantagem sem preço: enquanto os nãofazedores devem contentar-se com o fato simplesmente irrecusável de que dois e dois são quatro, ele se compraz com uma verdade puramente irresistível (a ser encontrada, de forma sintética, no título deste volume).

(tradução do site o poema - pelo menos é assim que minha mente o intitula)

If a poet is anybody, he is somebody to whom things made matter very little--somebody who is obsessed by Making. Like all obsessions, the Making obsession has disadvantages; for instance, my only interest in making money would be to make it. Fortunately, however, I should prefer to make almost anything else, including locomotives and roses. It is with roses and locomotives (not to mention acrobats Spring electricity Coney Island the 4th of July the eyes of mice and Niagara Falls) that my "poems" are competing. 
They are also competing with each other, with elephants, and with El Greco.
Ineluctable preoccupation with The Verb gives a poet one priceless advantage: whereas nonmakers must content themselves with the merely undeniable fact that two times two is four, he rejoices in a purely irresistible truth (to be found, in abbreviated costume, upon the title  page of the present volume)

(o original). E abaixo, poema transcriado e poema criativo. Que gostem.

te tocando eu digo(noite e prima
vera)"vamos pouco além da última
estrada-lá tem algo pra ser visto"

e sorrindo dizes "todo isto
vira aquilo e escorre entre os dedos...
(estas folhas tão babadas de orvalho
e eu jamais tive aqui tão pouco medo")
digo
"andando esta estradinha a lua se você
reparar bem nos segue como um pardo cachorrão.

Crês não? pois olhe lá.(Por sobre a areia
atrás de nós,um cão amarelado que...virou vermelho
cachorro grande avermelhado que pode bem ser adotado
por sei lá quem)
                    vire um pouco seu. assim. E

eis a lua,com seu algo de verdade e maluquez"




touching you i say(it being Spring
and night)"let us go a very little beyond
the last road—there's something to be found"

and smiling you answer "every thing
turns into something else,and slips away....
(these leaves are Thingish with moondrool
and i'm ever so very little afraid")
    i say
"along this particular road the moon if you'll
notice follows us like a big yellow dog. You

don't believe? look back.(Along the sand
behind us,a big yellow dog that's....now it's red
a big red dog that may be owned by who
knows)                                                             
only turn a little your. so. And

there's the moon,there is something faithful and mad"

segunda-feira, 29 de julho de 2013

menos que um: o caminho de yuanming

Uma reverenda budista, amiga, pediu uma tentativa de tradução do poeta chinês Tao Yuanming (séc. IV e V). Sem delongas, cá está. Há uma infinidade de versões inglesas dele, e mesmo a minha não é ainda definitiva. Que gostem.

no vinho

moro em meio aos homens
mas nenhum barulho me perturba.
"Como pode ser?", você pergunta,
seu coração distante se confunde.
crisântemos colhidos dos arbustos
montanhas bem ao longe.
a luz por suas névoas são brilhantes
e os pássaros voltando todos juntos.
em tudo há sentido verdadeiro
mas não tenho palavras pra dizê-lo



結廬在人境,
而無車馬喧。
問君何能爾?
心遠地自偏。
採菊東籬下,
悠然見南山。
山氣日夕佳,
飛鳥相與還。
此中有真意,
欲辯已忘言。

sexta-feira, 28 de junho de 2013

com a palavra: Idelber Avelar

Uma tradução, como qualquer discurso, nunca é completamente ingênua. Pode ser inconscientemente ardilosa, pode não ser conscientemente perversa, mas nunca é ingênua e pura. Neste caso aqui, político, ela não só é ardilosa como, consciente, é ideológica.

"Todos os principais jornais e portais de notícias brasileiros publicam hoje matérias sobre Edward Snowden, nas quais insistem numa tradução que, no meu modo de ver, é monstruosa. Um "whistleblower" não é, não é, não é um "delator". Ser um "whistleblower" é uma honra, um ato de coragem, um exercício de cidadania.

Um "whistleblower" arranca segredos do poder, falcatruas dos poderosos, e os oferece gratuitamente ao interesse público. Um delator é exatamente o contrário disso: entrega um indivíduo às garras desse mesmo poder. Bradley Manning e Edward Snowden não são "delatores". Eles não são Cabo Anselmo, não são Joaquim Silvério dos Reis.

Traduzam como queiram, "denunciante", "revelador de segredos do Estado", a elegância da tradução pouco me importa. Mas incomoda-me muito que a palavra "delator" -- que nomeia o ponto mais baixo a que pode chegar a dignidade humana -- continue sendo associada a figuras tão corajosas e dignas como Bradley Manning e Edward Snowden."


Sobre Edward Snowden, vazador de informações da CIA: http://en.wikipedia.org/wiki/Edward_Snowden
Sobre Bradley Manning, da WikiLeaks: http://en.wikipedia.org/wiki/Edward_Snowden

segunda-feira, 17 de junho de 2013

menos que um: chacal e américa amem em inglês

Uma amiga brasileira que estuda em Chicago, terra de bom blues, trabalha com relações literárias entre Walt Whitman, antropofagia oswaldiana, poesia e música. Daí me pediu pra traduzir ao inglês – certo seria dizer verter – um poema de Chacal, e eu verti.

Chacal é poeta dos setenta, pós-explosão do amor dos sessenta e pouco. Carioca, foi publicado em coisas de Torquato e Waly Sailormoon, e é dos nomes mais conhecidos da marginalidade literária que começou por ali, com ele, na geração mimeógrafo.



Então traduzi América Amem – melhor dizendo, verti – e cá está. Dei-me o direito de substituir referências mitológicas (fauno por sátiro, por exemplo) e especificar acepções mais polívocas (pau duro, embora Patrícia – a amiga – tenha me lembrado que pau, além de ser o pau do pau duro, é pau de madeira também, coisa que eu muito libidinosamente sequer havia considerado quando traduzi woody).

Outra coisa polivocidade que bem deixei passar, eu sei, foi a ambiguidade de amém, a exclamação religiosa, e amem, o verbo bem conjugado no imperativo (categórico, diria Kant se ele fosse woody). Mas optei por uma exclamação abrangente, um quase vocativo que encerra o chamado também incluído em amém. Vejam vocês.

AMERICA HEY MEN

america hey men
taught me so be it
anthropophagic pagan
a levis-suited satyr
america hey men
words
wore
wordy
america hey men
pau duro duro
voo doo
bean & burp
america amen
our despair
our passion
immense

AMÉRICA AMEM

américa amem
me ensinou a ser assim
antropofágico pagão
um fauno de calça lee
américa amem
palavras
palas
palavreados
américa amem
woody woody
voo doo
feijão & arroto
américa amem
nosso desespero
nossa paixão
imensa

Além disso, já que o trabalho é sobre a relação com a poética de Whitman, e já que Chacal é fauno de calça lee, seguem dois vídeos publicitários da Levi's – que não é Lee, mas é jeans – capitalizando no bom barbudo, o espírito da revolução americana. Diz-se que o vídeo de America tem o áudio do próprio Whitman declamando seu poema. Quem saberá?




terça-feira, 28 de maio de 2013

menos que um: victor hugo don juan

Tirado da epígrafe em Don Juan, de Gonzalo Torrente Ballester, segue um pequeno Victor Hugo em português, só por diversão.
Victor Hugo por Auguste Rodin

Bendita seja a Providência
que concede a cada um o seu brinquedo,
boneca à criança,
criança à mulher,
mulher ao homem,
o homem ao capeta!

Bénie soit la Providence, qui a donné
à chacun son joujou, la poupée à
l’enfant, l’enfant à la femme, la femme
à l’homme, l’homme au diable!

VICTOR HUGO, Journal, 1832

domingo, 26 de maio de 2013

menos que um: gonzalo torrente ballester, tão grande quanto cervantes

Através de uma troca lícita mas não tão honesta assim, negociando livros a centavos no mercado de Triana, tirei dois pequenos volumes das mãos de um cigano sevillano, deixando no lugar algumas poucas moedas. Um deles, que logo me encantou, foi escrito por Gonzalo Torrente Ballester, e se chama El cuento de Sirena. É uma metaficção tratando da escrita de uma ficção e que, ao fim, não se sabe o quanto foi fictícia: mas funcionou, e era isso que ele queria.

A linguagem de Ballester é livre, desimpedida e fluida, talvez por causa de sua origem galega. O próprio conto da sereia é baseado em umas histórias vindas já de Portugal, do velho poeta rei Dom Dinis. Seja como for, aqui traduzo um pequeníssimo diálogo de outro livro seu, Crónica del Rey pasmado, também fantástico e divertidíssimo de ler.

Leveza é um traço que, de mãos dadas à construção e desenvolvimento de personagens, o autor domina com excelência. Foi da Real Academia Española, vencedor de vários prêmios e, segundo José Saramago - num prefácio da tradução portuguesa de outro livro (La saga/fuga de J.B.), que comprei ontem e não comecei a ler - Gonzalo Torrente Ballester é o escritor que ocupou o espaço, antes vago, ao lado de Cervantes.

"O corpo de Marfisa estava meio descoberto: viam-se seus cabelos, costas, a cintura finíssima e o início de suas nádegas. O Rei a olhava com surpresa e estupefação.

- Já viste algo mais belo?

- Há muitas coisas belas no mundo.

- Mais que o corpo de uma mulher?

- Mais que o de Marfisa, dificilmente.

- Nunca tinha visto, até esta noite, uma mulher nua.

- E que achastes?

- O paraíso tem de ser coisa semelhante.

O conde torceu o nariz.

- Não creio que os senhores inquisidores aprovariam tal ideia.

- E o que saberiam os senhores inquisidores de mulheres nuas?"



"El cuerpo de Marfisa había quedado medio al descubierto: mostraba la cabellera, la espalda, la delgada cintura, el arranque de las nalgas. El Rey la miró: con sorpresa, con estupefacción.

- ¿Has visto algo más bello?

- Hay muchas cosas bellas en el mundo.

- ¿Más que el cuerpo de una mujer?

- Si es el de Marfisa, difícilmente.

- Nunca había visto hasta esta noche una mujer desnuda.

- ¿Y qué?

- El paraíso tiene que ser una cosa semejante.

El conde torció el morro.

- No creo que los señores inquisidores aprobasen esa idea.

- ¿Qué sabrán los señores inquisidores de mujeres desnudas?"

(Crónica del Rey pasmado - Gonzalo Torrente Ballester.
Barcelona: Espasa Libros, 2011, p. 13)

quinta-feira, 23 de maio de 2013

menos que um: canção de maeterlinck

Descobri recentemente que a poesia simbolista belga, entre a racionalidade francesa e o romantismo alemão,  deu origem a uma tradição bastante diferente dos outros dois países. Descobrindo Maurice Maeterlinck, encontrei uma canção que aqui traduzo. Canção é um gênero lírico do qual gosto bastante, sobretudo pela - óbvia - musicalidade que o compõe (há mesmo uma referência sobre esse poema ter sido musicado e/ou arranjado para piano por Jean Absil, mas não encontrei o áudio. Deixo aqui uns extratos de composições dele, de todo modo).

Maeterlinck recebeu o Nobel de literatura em 1911, é conhecido pelo misticismo de influências flamengas e pela importância que tem no simbolismo francófono. Aqui ele canta. Ouçamos.

Procurei trinta anos, irmãs,
onde foi que se escondeu!
Procurei trinta anos, irmãs,
sem chegar mais perto del'...

Procurei trinta anos, irmãs,
e meus pés cansaram,
Ele estava em todo canto, irmãs,
inexistente...

Chegada a triste hora, irmãs,
retiro as sandálias,
A noite também morre, irmãs,
e minha alma falha...

Vocês tem dezesseis, irmãs,
partam para longe,
Peguem meu bordão, irmãs,
vejam onde se esconde...

J’ai cherché trente ans, mes soeurs,
Où s’est-il caché!
J’ai marché trente ans, mes soeurs,
Sans m’en approcher. . .

J’ai marché trente ans, mes soeurs,
Et mes pieds sont las,
Il était partout, mes soeurs,
Et n’existe pas. . .

L’heure est triste enfin, mes soeurs,
Ôtez mes sandales,
Le soir meurt aussi, mes soeurs,
Et mon âme a mal. . .

Vous avez seize ans, mes soeurs,
Allez loin d’ici,
Prenez mon bourdon, mes soeurs,
Et cherchez aussi. . .

sexta-feira, 17 de maio de 2013

menos que um: excerto de cummings

de um poema que ainda traduzo todo. Fiquem com um pouco:


(Enquanto tu e eu tivermos bocas e vozes para
beijar e cantar com elas
que importa que um filhodaputa limitado
tenha inventado um medidor de Primavera?


(While you and i have lips and voices which
are for kissing and to sing with
who cares if some oneeyed son of a bitch
invents an instrument to measure Spring with?

menos que um: e.e. cummings como arquitetura ascensional


sou uma igrejinha(não catedral imensa)
distante da sórdida e deslumbrante pressa das cidades
-não me perturba que os dias pequenos apequenem mais,
eu não lamento quando sol e chuva são abril

minha é a vida do que planta e do que colhe;
meus os pregadores da terra em seu esforço torto
(achando e perdendo e rindo e chorando)crianças
de quem alegria e tristeza são meu encanto e lamento

à minha volta brota o milagre do incessante
nascer e glória morte ressurreição:
sobre meu sono voam símbolos flamejantes
de esperança,e me perfeito com a paciência das montanhas

sou uma igrejinha(longe do agito
do mundo, seu êxtase e angústia)em paz com a natureza
-não me perturba que noites longas se alonguem mais,
eu não lamento quando silêncio vira em cantar

inverno vai primavera,ascendo o pequeno cruzeiro
aO Compassivo pra quem só o instante é eterno :
altivo na verdade imortal de Sua presença
(humildemente acolhendo Sua luz e com orgulho a escuridão)


i am a little church(no great cathedral)
far from the splendor and squalor of hurrying cities
-i do not worry if briefer days grow briefest,
i am not sorry when sun and rain make april

my life is the life of the reaper and the sower;
my prayers are prayers of earth's own clumsily striving
(finding and losing and laughing and crying)children
whose any sadness or joy is my grief or my gladness

around me surges a miracle of unceasing
birth and glory and death and resurrection:
over my sleeping self float flaming symbols
of hope,and i wake to a perfect patience of mountains

i am a little church(far from the frantic
world with its rapture and anguish)at peace with nature
-i do not worry if longer nights grow longest;
i am not sorry when silence becomes singing

winter by spring,i lift my diminutive spire to
merciful Him Whose only now is forever:
standing erect in the deathless truth of His presence
(welcoming humbly His light and proudly His darkness)

e.e.cummings

terça-feira, 14 de maio de 2013

menos que um: música country

Um pouco de histórias. Quatro grandes nomes da música country americana se reuniram em 1985 e formaram um, como foi chamado, supergrupo. Johnny Cash, Willie Nelson, Waylon Jennings e Kris Kristofferson se transformaram por dez anos nos Highwaymen, os homens da estrada.

Highwayman designa um ladrão de estrada, tendo origem na Inglaterra do século XVII - o termo, não o ladrão, que provavelmente existe desde que existem estradas. A música que dá nome ao grupo - e que traduzi aqui - não foi composta por nenhum dos quatro, mas por Jimmy Webb, na década de 70. A canção esperaria alguns anos até virar um hino country fora-da-lei, uma das músicas que mais gosto de todas as músicas que conheço (e, trivia, eu conheço muitas músicas).

O processo de tradução foi parecido com o que sempre faço ao traduzir poesia - atentei para o ritmo das palavras, para a disposição sonora do texto. Mas aqui, por se tratar de uma música mesmo, sobretudo uma que me é tão familiar, tive o critério máximo de fazer com que a tradução coubesse na melodia. Como diriam, acho que "cabeu".

Antes dos textos, o clip da música dos Highwaymen. A tradução do título deve muito a outra música, que também gosto muito e que vocês podem ouvir neste post. Espero que gostem.



The Highwaymen - Highwayman (stereo) por d-limonen

- Bandoleiro

Fui bandoleiro.
Por longa estrada cavalguei
Com bala e espada eu duelei
Muita donzela foi mulher em minha cama
Muito soldado viu seu sangue em minha lâmina
Os desgraçados me enforcaram em vinte e cinco
Mas eu ainda vivo.

Fui marinheiro.
Nasci no embalo da maré
No ser do mar eu tive fé
Levei a escuna desde o Chile ao México
Soltei a vela principal que se enfunou
E quando o mastro se partiu me viram morto
Mas não zarpei do porto.

Ergui represa
detendo um rio profundo e largo
onde aço e água se chocaram.
Num tal de Boulder, no deserto Colorado
Caí de muito alto, sobre o chão molhado
Me enterraram onde não se pode ouvir
Mas ainda estou aqui
(Sempre estarei aqui. E aqui. E aqui)

Guio uma nave
pelo espaço sideral
E quando eu chegar ao final
Espero achar um bom lugar pra ter sossego
Ou, de repente, volto a ser um bandoleiro
Talvez me torne uma gota a chover, talvez
Mas sempre existirei
Voltarei outra vez, outra vez e outra vez...

Highwayman

I was a highwayman. 
Along the coach roads I did ride
With sword and pistol by my side
Many a young maid lost her baubles to my trade
Many a soldier shed his lifeblood on my blade
The bastards hung me in the spring of twenty-five
But I am still alive.

I was a sailor. 
I was born upon the tide
And with the sea I did abide.
I sailed a schooner round the Horn to Mexico
I went aloft and furled the mainsail in a blow
And when the yards broke off they said that I got killed
But I am living still.

I was a dam builder 
across the river deep and wide
Where steel and water did collide
A place called Boulder on the wild Colorado
I slipped and fell into the wet concrete below
They buried me in that great tomb that knows no sound
But I am still around... I'll always be around..and around and around and 
around and around

I fly a starship 
across the Universe divide
And when I reach the other side
I'll find a place to rest my spirit if I can
Perhaps I may become a highwayman again
Or I may simply be a single drop of rain
But I will remain
And I'll be back again, and again and again and again and again...



Ps.: Inicialmente, traduzi "the Horn to Mexico" como "do rio ao México", supondo que a escuna tivesse navegado pelo rio Horn, que fica no Mississippi. Entretanto - e isso já está mudado, embora o Horn continue não aparecendo - acredito que a referência é ao Cabo Horn, no Chile, ponto extremo para a navegação e com um histórico bastante interessante que remonta aos tempos das "Grandes Descobertas". Assim, nossa alma migratória esteve ao sul da Terra do Fogo, na segunda estrofe da canção.

A encarnação que constrói uma represa, em algum lugar do Colorado, trabalhou na década de 1930 na construção da represa Hoover - a maior dos Estados Unidos e uma que levou a vida de centenas de operários, em seu processo. 

domingo, 12 de maio de 2013

menos que um: barry gifford, sério amor

Sem delongas: Barry Gifford em tradução minha, sugerida e lapidada por Marcia Heloisa, amiga e tradutora - mais e melhor que eu.

Sério amor

Tua loucura me deixa
meio mal, sério
mesmo-Tipo
Maiakovski ajoelhado
declarando
amor
à sua última
amante
logo depois
de a conhecer
Lembra de mim
em Paris,
ajoelhado
no elevador?
Somos todos iguais
homens tão passionais
e um tanto talentosos-
alguns um pouco mais
que outros
Nos fazemos de otários
pensando
que somos fortes
e reclamamos
o resto da vida inteira
capados pelas
consequências.



Your sickness made me
a little sick, it's
true—I still
feel it
Mayakovsky got down
on his knees
and declared
his love
to his last
mistress
a few hours after
he'd met her
Remember me
at the hotel
in Paris,
on my knees
in the lift?
We're all the same
men of too much passion
and a little talent—
some a little more
than others
We fool ourselves
into thinking
we're strong
then complain
the rest of our lives
crippled by
the consequences.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

menos que um: elizabeth bishop, poema-aula e paulo henriques britto

Acordei com um poema e uma tradução em minha caixa de mensagens. São os que seguem. Elizabeth Bishop (que viveu muito tempo no Brasil e chegou no país pelo porto de Santos, minha cidade) fala sobre a perda, o perder e a relação com isso. Um tema que me interessa muito, diga-se.

A tradução era de Paulo Henriques Britto, grande tradutor de quem eu recomendo A tradução literária. Coloco aqui, como de costume, o original e a tradução, ambos depois da tradução que arrisquei.

Porque arrisquei, mesmo, considerando o tanto de ritmo específico e rimas constantes que esse poema tem. As soluções de minha tradução, se comparadas com a profissional de Paulo, são quase completamente diferentes. Desde as terminações até a estrutura rítmica dos versos. Mas cá está, espero que aceitável.


Uma arte

A arte da perda é fácil estudo;
tanta coisa é perdida e se basta
que nada nunca é o fim do mundo.

Perca um tanto, todo dia. Aceite o luto
pelas chaves de casa, a hora mal gasta.
A arte da perda é fácil estudo.

Então perca mais, e mais rápido:
lugares, nomes, o voo e a escala
pra onde, mesmo? Nada é o fim do mundo.

Perdi o relógio da mãe. E tudo
das últimas três casas que gostava.
A arte da perda é fácil estudo.

Perdi belas cidades, rios graúdos,
uns reinos, continente, terra vasta.
Perdi, mas não foi nada o fim do mundo.

- Mesmo te perder (a voz, o riso surdo
que eu amo) seria nada. Vai, anota:
a arte de perder é fácil estudo
mesmo que pareça o fim do mundo.



The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.


Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia.Aceite,austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte da perda não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

(tradução de Paulo Henriques Britto)


terça-feira, 7 de maio de 2013

menos que um: dorothy parker, anti-suicídio e minha guia

Uma amiga zelosa que muito gosta de mim, experientíssima em tradução - currículo invejável, digo logo -, me apresentou Dorothy Parker e um seu poema, Resumé. Disse ela - a amiga, não a autora - que já tentara traduzir esses versos mas não tinha ficado satisfeita. Eu, como bom atravessador que sou, resolvi tentar. Espero que satisfaça pelo menos um pouco.

Logo de partida sua poesia me pareceu uma anti-poesia da experiência. É como se ela pegasse, pelo menos nesse resumé, Sylvia Plath, Anne Sexton, John Berryman (de quem traduzi uns poemas, alguns Dream Songs, que esperam por publicação através da nossa querida amiga, professora, poetisa e ser paranormal, Lucila Nogueira), todo o martírio e o solilóquio vivencial do suicídio e risse da cara dele. Anne Sexton tem um tanto disso, também, mas ainda assim...

Daí que Dorothy me pareceu muito agradável, especialmente pelo ritmo de seu resumo: é o mesmo ritmo que ouvimos cantarolado por crianças no caminho da escola, quando o menino mais velho e/ou mais esperto importuna o menor até esgotar o fôlego. Uma cantiga de escárnio infantil, que tentei reproduzir, com seu tom leve e ritmado, com seu desfecho irônico-superior.


Resumé

Lâminas te doem;
Rios são um tanto úmidos;
Ácidos corroem;
Drogas travam músculos.
Armas, ilegais;
Forca perde o laço;
Gás cheira demais;
Viva, que é mais fácil.





Razors pain you;
Rivers are damp;
Acids stain you;
And drugs cause cramp.
Guns aren’t lawful;
Nooses give;
Gas smells awful;
You might as well live.

menos que um: wordsworth, palavra digna

Lendo e.e. cummings (suas inconferências traduzidas aqui em Portugal) encontrei um poema de William Wordsworth, que cummings cita no fim do primeiro capítulo. Intimações da Imortalidade A Partir De Lembranças Da Infância (Ode on Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood), o nome do longo poema do qual traduzi apenas alguns versos - os que me interessaram de verdade, devo dizer. Tentei reproduzir um tanto da sonoridade e dos padrões de rima do original, com evidente fracasso - fracasso do qual a tradutora portuguesa se esquivou simplesmente não rimando nada. Seguem as versões.

Pois cantem, aves, cantem, cantem um alegre som!
Deixem que os cordeiros dancem
Dos tamborins o tom!
Nós, em pensamento, estaremos com vocês,
Que cantam e que dançam,
Que os corações alcançam
De Maio o tempo bom.
(minha tradução)


Then, sing, ye birds, sing, sing a joyous song!
And let the young lambs bound
As to the tabor's sound!
We, in thought, will join your throng,
Ye that pipe and ye that play,
Ye that through your hearts to-day
Feel the gladness of the May!
(original de Wordsworth)


Então cantai, aves, cantai, cantai uma canção alegre!
E deixai que os jovens cordeiros saltitem
Ao som do tamborim!
Nós em pensamento juntar-nos-emos à vossa multidão.
A vós que cantais e tocais,
Que através dos vossos corações hoje
Sentis a alegria de Maio!
(tradução de Cecília Rego Pinheiro)



segunda-feira, 6 de maio de 2013

menos que um: gary snyder, japão e primavera

Tenho sono, é primavera, estamos em maio, não durmo, quis traduzir. Não vou falar sobre Gary Snyder: deem uma olhada no link e descubram por vossa conta. A única coisa que adianto é seu papel definitivo para muito do que sou hoje - ou seja, nada, mas não por culpa dele. Budismo, Zen, poesia, geração beat e tradução. Japhy Ryder - sua versão romanceada de Os Vagabundos Iluminados, de Jack Kerouac - é personagem sempre presente em meu imaginário. "É impossível cair de uma montanha".


Uma noite primavera em Shokoku-ji

Oito anos atrás este mês
Passeamos sob a flor de cerejeiras
Na noite de um pomar em Oregon.
Tudo que eu queria então
Já esqueci, menos de ti.
Aqui nesta noite
Num jardim da capital antiga
Sinto o fantasma trêmulo de Yugao
E lembro teu corpo fresco
Nu dentro das vestes de algodão.



Eight years ago this May 
We walked under cherry blossoms 
At night in an orchard in Oregon. 
All that I wanted then 
Is forgotten now, but you. 
Here in the night 
In a garden of the old capital 
I feel the trembling ghost of Yugao 
I remember your cool body 
Naked under a summer cotton dress. 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

menos que um: william carlos williams outra vez

E o mesmo poema. Recebi algumas críticas e sugestões de quem respeito muito em tradução e pronto, cá está uma outra tentativa, com alguns versos alterados, alguns ritmos e ordens, algumas coisas. A caixinha de críticas e sugestões ainda está - sempre estará - aberta.


Lamento

Chamam-me e eu vou.
Passou da meia-noite,
a estrada congelada, pneu
crava no asfalto
a neve em duro rastro.
A porta abre.
Sorrio, entro e
descalço o frio.
Vejo a mulher inchada
deitada em seu lado da cama.
Ela está doente,
talvez vomitando
ou então no sufoco
para dar à luz
o filho dez. Viva! Viva!
A noite apaga as luzes
do quarto em que se trepa,
pela persiana emana o sol
um douradíssimo filete!
Tiro o cabelo de seus olhos
e assisto, em compaixão,
sua desgraça.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

menos que um: william carlos williams, raul fiker e lamentação

Eu sempre gostei dos beats (Jack Kerouac, Ginsberg, Gary Snyder e por aí afora). Na faculdade, uma vez, Raul Fiker deu uma aula sobre filosofia e eles, os poetas malucos marginais e outsiders. No meio da aula entrou uma cachorra viralata, porta adentro, e ilustrou o que dizia o professor. Fiker falou "Vejam só, uma outsider". Ela era.

Na mesma aula ouvi falar sobre William Carlos Williams, uma espécie de pai antecessor dos poetas beat. A história era assim:

- Quando William Carlos Williams estava pra morrer, na cama do hospital, os beats todos se reuniram em volta, esperando o velho falar. Estavam todos lá, o doente ia morrer e eles estavam ansiosos para saber as últimas palavras, a poesia derradeira, qualquer coisa assim. O velho estendeu a mão, apontou o indicador pra janela e sentenciou: "Lá fora só tem filho da puta".

Se é verdade ou não, não sei. Vou defender essa história até a morte (em parte porque é muito boa, iconoclasta, em parte porque se ajunta às lendas de Raul Fiker - sério, são muitas e todas muito boas).

Cá está, portanto, uma traduçãozinha do visionário que sabia só existir, cá fora da janela, filhos da puta.

Lamento

Chamam-me e eu vou.
Passou da meia-noite,
a estrada congelada, pneu
crava no asfalto
a neve em duro rastro.
A porta abre.
Sorrio, entro e
descalço o frio.
Vejo a mulher inchada
deitada em seu lado da cama.
Ela está doente,
talvez vomitando
ou então no sufoco
para dar à luz
o filho dez. Viva! Viva!
A noite apaga as luzes
do quarto em que se trepa,
pela persiana emana o sol
um douradíssimo filete!
Tiro o cabelo de seus olhos
e assisto, em compaixão,
sua desgraça.





They call me and I go. 
It is a frozen road 
past midnight, a dust 
of snow caught 
in the rigid wheeltracks. 
The door opens. 
I smile, enter and 
shake off the cold. 
Here is a great woman 
on her side in the bed. 
She is sick, 
perhaps vomiting, 
perhaps laboring 
to give birth to 
a tenth child. Joy! Joy! 
Night is a room 
darkened for lovers, 
through the jalousies the sun 
has sent one golden needle! 
I pick the hair from her eyes 
and watch her misery 
with compassion. 

[e aqui, uma primeira versão da tradução tentada

Lamento


Chamam-me e eu vou.
Passou da meia-noite,
a estrada congelada, pneu
crava no asfalto
a neve em duro rastro.
A porta abre.
Sorrio, entro e
sacudo fora o frio.
Eis uma grande dona
em seu lado da cama.
Ela está doente,
talvez vomitando
ou então no sufoco
para dar à luz
o filho dez. Viva! Viva!
A noite é escuro
quarto para amantes,
pela persiana emana o sol
um douradíssimo filete!
Tiro o cabelo de seus olhos
e assisto sua desgraça
em compaixão.]

quarta-feira, 1 de maio de 2013

menos que um: a porta, robert creeley em uma estrofe

Dei de cara com uma estrofe de Robert Creeley, hoje, na página inicial do Poets.org. Gostei e traduzi. É do poema The Door, que por acaso não encontrei nesse site, mas em outro (o Poetry Foundation, aqui: The Door)

Robert Creeley, na mesma levada de William Carlos Williams, Ezra Pound e outro poetas revolucionários do período, parece ter influenciado a mentalidade do meio do século passado, na poesia americana. Ainda não sei, mas essa estrofe inicial tem uma imagem bastante forte e uma sonoridade dispersa que tentei reproduzir. Menos que um bom trabalho.

foto por Michael Romanos
Senhora, não me expulse
por divagar. Minha índole
é um pantanal de confissões
a terminar. Senhora, eu sigo.


Lady, do not banish me  
for digressions. My nature  
is a quagmire of unresolved  
confessions. Lady, I follow.

terça-feira, 30 de abril de 2013

menos que um: primeira noite, billy collins e poesia contemporânea

Passeando pelo ótimo Poets.org encontrei o que é dito ser "o poeta mais popular da América" (pelo New York Times, e América aqui sendo, como é sabido, a terra do seu Sam), Billy Collins.

Lendo um poema do qual gostei (The First Night, que aqui está), resolvi traduzir pra começar o dia. Menos que um, apenas um exercício, já expliquei o que quero com este espaço.

Eis o poema traduzido e, abaixo, a versão original.


por Juliet Van Otteren
A pior coisa sobre a morte deve ser
a primeira noite.
- Juan Ramón Jiménez

Antes de te abrir, Jiménez,
nunca me ocorreu que dia e noite
seguiriam sempre em ciclo após a morte

mas agora estou pensando
se haverá também um sol e lua
se os mortos se reúnem para os ver nascer, se pôr

e então voltar, cada alma só,
a algum medonho equivalente de uma cama.
Ou talvez seja a primeira noite a noite única,

uma escuridão para a qual não temos nomes?
Quão débil o vocabulário frente à morte,
Quão impossível deitá-la ao papel.

Eis onde a linguagem vai parar,
cavalo que nos carrega por toda a vida
erguendo-se à beirada do penhasco.

Palavra que esteve no início
palavra que foi feita carne -
tais e todas mais irão cessar.

Mesmo agora, te lendo aqui na varanda em flora,
como hei descrever um sol brilhando pra além da morte?
Isso é o bastante que me amedronte

a prestar atenção a esta lua no céu do dia,
ao brilho do sol sobre as águas
refletido nas folhas da mata,

e a olhar mais de perto estas pequenas folhas,
o espinho sentinela
empregado em guardar a rosa.
The worst thing about death must be
          the first night.
                    —Juan Ramón Jiménez


Before I opened you, Jiménez,
it never occurred to me that day and night
would continue to circle each other in the ring of death,

but now you have me wondering
if there will also be a sun and a moon
and will the dead gather to watch them rise and set

then repair, each soul alone,
to some ghastly equivalent of a bed.
Or will the first night be the only night,

a darkness for which we have no other name?
How feeble our vocabulary in the face of death,
How impossible to write it down.

This is where language will stop,
the horse we have ridden all our lives
rearing up at the edge of a dizzying cliff.

The word that was in the beginning
and the word that was made flesh—
those and all the other words will cease.

Even now, reading you on this trellised porch,
how can I describe a sun that will shine after death?
But it is enough to frighten me

into paying more attention to the world’s day-moon,
to sunlight bright on water
or fragmented in a grove of trees,

and to look more closely here at these small leaves,
these sentinel thorns,
whose employment it is to guard the rose.

domingo, 28 de abril de 2013

menos que um: Shakespeare, Macbeth, som e fúria

Arthur Malaspina, meu amigo e (vagabundo) tradutor, dia desses falou sobre uma estrofe de Macbeth e arriscou uma tradução. Arrisquei outra, também. É aquela passagem famosa e impactante, "vida é som e fúria", todos sabemos. Som e fúria, já ouvimos por aí. Então cá estão o mestre Shakespeare e as nossas ousadias.

Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

(Shakespeare, Macbeth, ato V, cena V)



A vida é só uma sombra andando, ator simplório
afetado em seu instante sobre o palco
e logo mudo. Um conto contado
por um tolo, repleto de fúria, estrondo
e senso algum.

(tradução minha)


A vida não é nada além de uma
sombra que anda, um pobre ator que
pavoneia e lamuria seu instante
no palco e depois não é mais ouvido:
é um conto contado por um idiota,
cheio de som e fúria, significando nada.

(tradução de Arthur Malaspina)